O problema da coisa na Fenomenologia (1900-1927)
07 de dezembro de 2024
Pedro Araújo
Sinopse:
“Dentre as três principais correntes do pensamento espraiadas pelo pesadume do século XX, distinguidas por José Ferrater Mora, em “La Filosofia Actual”, a fenomenologia é, a um tempo só, a mais influente e a que, perfurando as expressões sonoras, mas ocas, faz com que o homem aprenda, única dentre as três, pela pedagogia hierárquica das coisas. Se a fenomenologia é a filosofia mesma, tese a provar-se na leitura desta obra, e se a filosofia não é outra coisa que não a pedagogia, a fenomenologia é, ela própria, um sistema pedagógico. Em relação ao primeiro ponto, escusado seria referi-la, pela densidade e amplitude dessa corrente, declinando os nomes de seus representantes mais destacados; citem-se, não obstante, a Jean-Luc Marion, a Edith Stein, a Xavier Zubiri e a Viktor Frankl. Em defesa do segundo ponto, relembre-se que seria um sinal de maturidade, o “ripeness is all” shakesperiano, de acordo com J. H. Newman, o matutar, o mastigar, o pensar só com as coisas, nelas mesmas. Assim, enfeixando o período de seu florescimento máximo, que finda nos semestres últimos da década de 1920, isto é, pela publicação de Sein und Zeit de Martin Heidegger, o representante legítimo, para além de quem o criou, do que se passou a designar de “movimento fenomenológico”, tal como o reconheceu o seu fundador, Edmund Husserl, este livro tem a finalidade de introdução aos meios sem os quais uma análise fenomenológica qualquer não se pode realizar. Descritivamente analítico, ele, se o é, por semelhança, em excesso, tem, em realidade, a qualidade da analiticidade em bem da intenção de estabelecimento de uma ciência estrita (strenge Wissenchaft), que é o cuidado magisterial que todo professor bom tem para com os seus alunos.”
Prefácio:
“O problema da coisa na fenomenologia é o título deste trabalho. A fenomenologia compreende-se, prima facie, por um retorno às coisas enquanto tais. O título poderia transmudar-se a esta expressão: “O problema da coisa no retorno às coisas enquanto tais.” A problematicidade de qualquer problema científico em geral, não só filosófico, manifesta-se bem somente àqueles que, de modo habitual, lidam com um determinado universo de objetualidades.
Por conseguinte, dá-se a razão para que se elida o substantivo “problema” daquela expressão, a fim de que se tenha esta outra: “A coisa no retorno às coisas enquanto tais.” De fato, ao menos para a intenção de explicação que consubstancia a feitura deste prefácio, tomar como pressuposto um qualquer problema em uma coisa designada de fenomenologia seria, como diz o povo, colocar a carroça à frente dos bois.
Explique-se, assim e de antemão, que a coisa nomeada de fenomenologia conduza a uma metodologia científica pela qual, precisamente, as coisas, em si mesmas e por si mesmas, devem alcançar-se. Que é este alcance? Este alcance é pressuposto como certo conhecimento. Mas a fenomenologia intenciona ser mais do que isso: não apenas uma suposição, e não só certo conhecimento.
Efetivamente, pelo significado imediato dos termos “suposição” e “certo”, é-se conduzido a uma indeterminação tal que alguma pretensão de constituição de uma metodológica científica não poderia não findar em desacertos puros.
Seria dizer pouquíssimo que Sócrates teria sido só certo homem. Ao contrário, este filósofo grego, que foi Sócrates, em sua individualidade única e indivisível, foi o que permitiu que a manifestação da indeterminação de “certo Sócrates”, pelo qual se significava pelos outros, surgisse à mente de seus coevos.
Certo homem anda a divagar pelas praças de Atenas. Duvida dos deuses tradicionais, acusando-os de crimes deslembrados. Corrompe a juventude, educando-a, o que diz fazê-lo, a negar do que sempre se soube.
Ora, uma indeterminação enquanto tal, que é a dos acusadores e a da comédia, que é a dos que, incapazes da intimidade do amor, enfraquecidos em sua vontade, não têm forças para testemunhar a verdade, não poderia ser suficiente para o infinito, pelos menos significado, em toda análise fenomenológica. Por conseguinte, a fenomenologia quer ser um conhecimento, porquanto um conhecimento efetivo. Se o conhecimento é efetivo, constata-se a possibilidade, na tética principiológica da fenomenologia, de que ele não seja hipotético…”
Introdução:
“O problema da coisa na fenomenologia é o título deste trabalho. A intenção desta introdução será a de mostrar que a unidade de sentido do todo desse trabalho consistirá num ziguezague (Zickzack), de idas e retornos, de avanços e recuos, de aproximações e distâncias em torno de uma única questão: a coisa. Com efeito, a vida e a morte da filosofia mesma giram ao redor do eixo tético a respeito da coisa; no-lo ensina Heidegger em “A ideia de filosofia e o problema da visão de mundo”. É o que se mostra, por exemplo, na perquirição fundamental da experiência filosófica, realizada, numa primeira vez, por Leibniz: “Pourquoi il y a plutôt quelque chose que rien?” Porque, afinal, se tão só se dessem coisas, como uma coisa se distinguiria de outra? Distinguir-se-á o algo em geral na perquirição pelo seu haver por certa apropriação de seu sentido, na fenomenalização respectiva da vivência questionadora; assim se verá abaixo melhor, ainda nesta introdução.
Antes de que essa unidade de sentido se mostre, no seu movimento mui típico de ziguezague, faça-se conhecer a razão por que um determinado recorte temporal se apensou ao título da pesquisa filosófica a iniciar-se. Ora, como se sabe, o texto-base do movimento fenomenológico é a obra “Investigações lógicas”, de Edmund Husserl, publicada nos dois primeiros anos do século XX, em 1900-1901. A um só tempo, Husserl reconhece, ipsis litteris, que “a fenomenologia é ele e Heidegger, e mais ninguém.” Tal se sabe, é o opus magnum de Heidegger “Ser e tempo”, de molde que, ao juízo deste trabalho, se tomou como propositada a escolha do limite extremo de sua constituição compositiva a tematização expressa da ideia-norte de coisa, cujas razões interpretativo-expositivas logo a seguir se apresentação com mais rigor, tal e como ela se apresenta — ou não se apresenta! enquanto problemática, de per se — nessa obra máxima. Para que a manifestação da coisa pela qual se perquire não se prosseguisse às tontas, julgou-se, ademais, de boa finalidade, a escolha de umas tantas obras feitas em um período anterior ao determinado pela publicação de “Ser e tempo”, em 1927, a fim de que a arquitetônica argumentativa pudesse ir formando-se, aos poucos, em seu in fieri. Assim é que um ensejo interpretativo a respeito de “A ideia de filosofia e o problema da visão de mundo”, de 1919, “O relatório Natorp”, conhecido também como “Interpretações fenomenológicas de Aristóteles”, cumpre dizê-lo, um dos, se não o maior, ensaios de erudição substantiva sobre o pensamento aristotélico nos novecentos, comparável somente à produção de Olavo de Carvalho, já mais recente, embora ainda no igualíssimo período secular, em “Aristóteles numa nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos”, esta de 1996, aqueloutra de 1922, prosseguindo-se, “Ontologia – hermenêutica da facticidade”, de 1923, e os “Prolegômenos à história do conceito de tempo”, de 1925, se realizou. Sublinha-se a isto: sob um problema, a verificar-se, parcialmente, nesta introdução, e, a mãos cheias, no corpo principal deste trabalho, que é o problema da coisa.
A coisa na fenomenologia. Que ela seria? Seria ela um garante apenas do conhecimento apodítico? Com efeito, o nomeado princípio dos princípios da fenomenologia exige um retorno às coisas mesmas, pois o seu enunciado é o seguinte: Tudo o que nos é dado originariamente na intuição, em efetividade de carne e osso, deve ser tomado tal como nos é dado, e somente nessa medida. As coisas devem ser dadas de um modo tal que, tendo sido dadas, a um ato de intuição originária, e dadas no como em que sejam dadas, podem elas ser admitidas como um objeto de conhecimento não só possível, conquanto necessário. Pois bem, a coisa é garante, em sua manifestação numa intuição originária, de um conhecimento científico…”